30 October 2006

Jornalismo do cidadão

O conceito de jornalismo, como muitos outros que foram emergindo ao longo da história, sofreu mudanças significativas até assumir a designação que actualmente lhe atribuímos. Essas mesma mudanças foram tanto fruto da evolução histórica, quanto do fervilhar tecnológico, que culmina com o aparecimento da World Wide Web e a sua massiva disseminação nos dias de hoje.

Frequentemente se discutem as alterações que a crescente institucionalização da Web como meio de comunicação por excelência podem gerar a longo prazo e os efeitos a nível psicossociológico que a sua utilização pode vir a originar. Teme-se uma absorção da sociedade real pelo computador, uma crescente virtualização da vida quotidiana. De facto, a Internet proporciona uma gama tão vasta de ferramentas e informação, que facilmente as diferenças se esbatem e as barreiras entre pessoas e instituições se tornam mais finas, mais ténues. A Internet veio democratizar o meio informativo, permitindo aos cidadãos não apenas receber qualquer tipo de informação, a qualquer hora, em qualquer lugar, como também colocar informação online e divulgar os seus próprios conteúdos, a um custo tão baixo que se poderia considerar irrisório, se atendermos aos seus efeitos e proporções.

É neste contexto que surgem os conceitos de “cidadão jornalista” e “jornalismo do cidadão”.

Por “cidadão jornalista” entende-se todo aquele que, não possuindo uma licenciatura em jornalismo ou qualquer experiência editorial, publica conteúdos informativos periodicamente, sem estar associado ou colaborar com nenhum media institucionalizado em particular. O “jornalismo do cidadão” está por isso intrínsecamente ligado à Internet, que permite a qualquer internauta publicar conteúdos a um custo muito reduzido e actualizá-los permanetemente. Estes neologismos brotaram sobretudo da febre dos Weblogs, que, à medida que foram ganhando terreno, se tornaram autênticos “journals”, um misto de diário, espaço de opinião e mesmo noticiário, arrastando consigo um leque cada vez mais vasto de leitores que, por sua vez, originaram novas páginas, contribuindo assim para uma autêntica corrente onde não há hierarquias, mas sim um mar nivelado de páginas e páginas onde cada um é um pouco jornalista, muitos exercendo mesmo a função com excelência sem nunca se terem especializado nela.
Quando acontecimentos que viriam a ser noticiados pelos mass media, como foi o caso do escândalo Mónica Lewinsky, são lançados por bloggers ou internautas – neste caso, o Drudgereport, da autoria Matt Drudge – já sob a forma de notícia, é necessário reflectir. Até porque se uma notícia lançada por um Weblog chega a ser difundida pelos media tradicionais, é natural que o público entenda estas publicações como notícia e lhes atribua uma validade que nem sempre existe. E aqui reside a grande questão: até que ponto o “jornalismo do cidadão” deve ser considerado jornalismo?
Partindo desta questão, o principal problema do jornalismo exercido pelos cidadãos reside na questão da credibilidade. Até que ponto se podem considerar fiáveis os conteúdos publicados na Web? Tendo em conta o facto de que, na maior parte dos casos, o autor nunca chegar a ser devidamente identificado, é sempre difícil avaliar até que ponto a informação divulgada pode ser considerada verosímil. Esta questão aplica-se tanto aos internautas como aos media tradicionais que neles encontram um autêntico mar de fontes cuja credibilidade é imperativo avaliar – embora tradicionalmente os media institucionalizados tendam a menosprezar estas emergentes formas de jornalismo, se assim consideradas. Numa altura em que a informação escorre sobretudo pelos canais da Internet, é muito tentador para o jornalista divulgar conteúdos que encontra em muitos dos inúmeros weblogs e que são passíveis de ser notícia. Especialmente quando o jornalismo nos dias de hoje funciona ao ritmo do segundo e a actualidade atinge um carácter imediatista extrapolado ao exagero. Apesar de ser um senão, esse mesmo fervilhar informativo pode facilitar o trabalho ao jornalista, uma vez que, mesmo que divulgue uma informação cuja credibilidade é dúbia, o tempo de duração da notícia será tão fugaz que não haverá tempo para verificá-la. No entanto, se todos os jornalistas seguissem esta lógica, não só o jornalismo estaria perdido na sua essência, como a notícia divulgada sem verificação se poderia voltar contra os seus próprios autores: não é à toa que Ciro Marcondes Filho e Lucien Stez nos falam em “Sociedade Frankenstein” e em “efeito boomerang”, lembrando-nos que, a qualquer altura, a mensagem se pode voltar contra o seu criador. Mas mesmo pondo de parte a responsabilidade do jornalista, o facto de muita gente entender os Weblogs como fonte de notícias e de consumirem a sua informação como se de um produto editorial se tratasse é um facto passível de reflexão.
No universo de vozes que se erigem propósito do avanço crescente do jornalismo participativo (outra das designações atribuídas ao “jornalismo do cidadão), Dan Gillmor é dos mais optimistas no que respeita aos Weblogs e ao fervilhar das páginas pessoais. Gillmor encara a emergência do “jornalismo do cidadão” como um aspecto positivo do choque entre o jornalismo e as novas tecnologias digitais, mais concretamente da Internet. Promove por isso a conciliação entre os media institucionalizados e os aspirantes a “self-made” journalists que ganham terreno a cada minuto. Na sua opinião, um jornalista é muito mais do que um licenciado em jornalismo, pelo que louva o trabalho de alguns amadores em relação ao de muitos jornalistas. Para Dan Gillmor, um profissional de comunicação hoje em dia chega a saber menos do que muitos dos leitores/telespectadores/ouvintes/internautas. Muitas vezes, quando um jornalista se depara com um acontecimento, já este foi tratado em alguns Weblogs, sob prismas e perspectivas em que não teria pensado. Exemplo disto poderá ser uma situação dada num determinado local onde alguém que a testemunhou a na sua página pessoal. O jornalista encontra ali a sua fonte, não como tradicionalmente a consideramos, mas de uma forma muito mais complexa, uma vez que, agora, o trabalho e a função da fonte começam a confundir-se com os do jornalista. É a tal quebra de barreiras supracitada que faz da Internet o mais democratizante dos meios de comunicação e, consequentemente, o mais complexo. Gillmor diz-nos que o jornalista serve o público e que, com a emergência do Jornalismo do cidadão, o segundo também serve o primeiro. Chega mesmo a pedir a opinião dos visitantes do seu Weblog sobre matérias em que está a trabalhar. (1) É quase como se através deste processo perigosamente lógico o jornalista passasse a ser encarado não como filtro da informação, mas como processador da mesma. O processo de Gatekeeping foge das mãos do jornalista e a ameaça das novas tecnologias associa-se à intervenção da audiência, outrora passiva, actualmente cada vez mais interventiva. Daí que alguns apocalípticos encarem o jornalismo do cidadão como o veneno que condenará o jornalismo tradicional à extinção.
Apesar de a problemática questão “Deverá o jornalismo exercido por cidadãos ser consiedrado jornalismo” se prender superficialmente com as principais diferenças entre a rotina editorial de um jornalista experiente e a audácia de um Weblogger decidido a fazer jornalismo pelas próprias mãos, o certo é que a difusão de publicações informativas geradas por vários internautas na mesma página online vem levantar novas questões sobre a própria definição do Jornalismo. Se encaramos a função do jornalista enquanto contador de estórias, repórter, do inglês “reporting”, então os Webloggers podem considerar-se jornalistas. Ainda assim, não sejamos ingénuos. O facto de se pder considerar alguns dos produtos publicados nos Weblogs como uma forma de jornalismo, amador ou não, não descarta a importância que os media institucionalizados continuam a desempenhar. É que, como acima referido, cada vez há uma maior reciprocidade entre o emissor e o receptor no processo de comunicação de massa, em muito impulsionada pelo novo meio, a Internet. Essa reciprocidade vem, contudo, reafirmar o papel dos media tradicionais que, por sua vez, vem dar razão a quem não se atreve a considerar jornalistas os intérpidos Webloggers, uma vez que na verdade os media tradicionais representam a principal fonte dos internautas responsáveis por publicações autónomas de carácter informativo. Quem partilha desta perspectiva é Paul Andrews, que afirma que “Though reportorial contributions have been made by the Web generation, it is fair to say the vast majority of blogging does not qualify as journalism.(…) Many blogs focus on narrow subject matter of interest to a select but circumscribed niche. And the blogs that do contain bona fide news are largely derivative, posting links to other blogs and, in many cases, print journalism. (…)Without the daily work of print journalists, one wonders if even the newsconscious blogs would contain any real news.” (2). Deste modo, Andrews aponta a principal lacuna dos Weblogs: a dependência das fontes informativas online, que na esmagadora maioria são os próprios media. O próprio refere ainda que “Assigned to do an investigative report on, say, police corruption, a typical blogger would not know where to begin. Calling a typical blogger a journalist is like calling anyone who takes a snapshot a photographer.”
A ausência da concretização de uma consciência corporativa, que foi o que fomentou o desenvolvimento dos mass media ao longo da história, parece ser a principal falha do jornalismo participativo. A grande vantagem que é estarem isentos da influência dos grandes media é ao mesmo tempo o que os impede de alcançar o estatuto de jornalistas, uma vez que, apesar de independentes, servem grupos específicos em torno dos quais criam e organizam os seus conteúdos. Fora do contexto local ou especializado em que se inserem, os Weblogs acabam por perder expressão. O carácter generalista dos media institucionalizados e a sua organização, que passa em muito pelo trabalho das agências e pela cooperação entre as próprias empresas jornalísticas, é o que lhes garante o lugar cimeiro no plano informativo e na comunicação de massas em geral.
Ainda que esta visão seja a que vai mais de encontro às minhas convicções no que respeita a esta matéria, não podemos descartar a influência e importância geral da crescente euforia dos Weblogs e sites dedicados ao jornalismo participativo. Até por um motivo muito simples: se um cidadão decide tentar fazer jornalismo pelas suas próprias mãos, é porque além de se achar apto para tal tarefa ( possibilitada pela vasta panóplia de tecnologias móveis e digitais), considera que pode mudar algo que não lhe agrada no modo como a informação é tratada. Os Weblogs, como já referido, tendem a assumir um carácter local, a adaptar-se a um determinado grupo de indivíduos que partilham um dado nº de interesses ou valores em comum. Disto são exemplo o Women’s eNews, um site de fins não lucrativos que procura captar novas vozes que não tinham possibilidade de se exprimir nas páginas dos media tradicionais online, cuja editora é Rita Jensey,e Kuro5hin, um site da autoria de Rusty Foster e que o próprio define como sendo “unique for those of you who haven't seen it. We're a news and opinion site that's written and edited democratically by all the readers. Anyone can submit a story, anyone can vote on submissions, and essentially the stories with the most votes are posted on the site. I don't pick the stories. everybody picks the stories. I like to call it collaborative media.” (1). Apesar de ambas as páginas conterem conteúdos de carácter informativo, ambas vão assumir perspectivas diferentes e abordar temáticas divergentes, em graus que variam consoante o vasto mosaico de participantes se vai estendendo e colaborando aleatoriamente. Por não diporem de uma estrutura sólida e organizada, estes “laboratórios jornalísticos” afastam-se do conceito de jornalismo edificado ao longo da história. No entanto, ao mesmo tempo, obrigam-no a actualizar-se e a reformular-se a si mesmo. O jornalismo do cidadão, mais do que uma ameaça ou uma farsa, deve ser encarado como uma séria tentativa de alguns cidadãos em tentar melhorar o meio mediático, relativamente ao qual ficam cada vez mais cépticos. Este cepticismo dos internautas face aos mass media deve-se muito ao parco aproveitamento dos recursos online que estes fazem, e também à fraca capacidade de adequação dos seus conteúdos ao meio digital, onde cada vez mais pessoas se movimentam e que possui caractrísticas específias às quais os restantes media não devem ser indifernetes. É por isso que J.D. Lasica reafirma o peso do papel desmpenhado pelos Webloggers nos dias de hoje. A seu ver, o jornalismo do cidadão, materializado através dos weblogs, tem mais validade do que a que os media tradicionais lhe emprestam. Segundo Lasica, os mass media tendem a desvalorizar as publicações online, mesmo estas constituindo uma importante fonte de informação. Chega mesmo a afirmar que “ journalism experts predict more couverage of breaking news will come from citizen reporters as photo and video-enabled phones become more obiquitous worldwide” (3), o que, aliado ao célebre exemplo do site sul-coreano OhMyNews, confirma a crescente expressão da participação dos cidadãos no processo informativo.
A juntar ao défice atribuído aos media tradicionais no que respeita ao tratamento dos conteúdos online, pode ainda considerar-se a crescente “corrupção” a que se assiste nos media institucionalizados. Nunca estes tiveram um público tão cognoscente e exigente. Actualmente, os grandes media, cada vez mais corporativos, vivem da esperança de que o público – ou públicos – se alimentem na fonte inexorável que deles brota a cada instante sem reclamações ou tempo par digerir, mas esquecem-se que a revolução já começou e o seu palco é a Internet. Online o público tem maior facilidade em comparar e segmentar a informação, em adaptá-la aos seus gostos e necessidades e em abordá-la livremente. A “ditadura mediática” é agora confrontada pela emergente “soberania da audiência”, que se faz valer das armas dos media institucionalizados para criar, a mote próprio, o seu jornal pessoal, livre de influências e perspectivas condicionadas. Pode-se considerar, então, o surgimeto do jornalismo feito por cidadãos e a sua grande disseminação como uma reacção à crescente passividade dos mass media em relação ao crescente fluxo informativo.
Uma vez assumindo a emergência do jornalismo participativo como fruto de uma lacuna dos media tradicionais, então, mais do que apontar falhas aos Webloggs ou questionar a sua credibilidade, impera avaliar qual a resposta que o jornalismo deve dar a este fenómeno, qual a lição a tirar deste conflito para seguir em frente rumo a um panorama informativo melhorado e verdadeiramente adaptado à tecnologia dominante, que, actualmente, será a Internet. Para tal, Paul Andrews sugere aos jornalistas que se envolvam eles próprios na febre dos Weblogs e que criem uma página pessoal taravés da qual possam estar em permanente contacto com o seu público. Andrews afirma que “blogs are transforming the ways in which journalism is practiced today and perhaps are giving impetus to new journalistic venues that have not yet clarified themselves (…) If bloggers can be journalists and blogs contain aspects of journalism, why
aren’t more journalists bloggers? “. (2)

A título conclusivo, Paul Andrews remata e eu limito-me a subescrever: “It might be that mass media of tomorrow will evolve further toward the blogging paradigm and journalism will expand from a centralized, top-down, one-way publication process to the many-hands, perpetual feedback loop of online communications. For now, to the extent that bloggers’ efforts prod journalists to be better at what they do, they are a valuable adjunct to—but not substitute for—quality journalism.” (2)

(3) http://www.nieman.harvard.edu/reports/03-3NRfall/70-74V57N3.pdf

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